Guardo as memórias visuais e olfactivas dos caracóis a cozer no lume forte e tragados com a convicção do dia da liberdade. Seguidamente descia com os meus Pais para o verde vivo da alameda em Faro onde o vermelho dos cravos se cravava no sorriso convicto estampado no rosto da liberdade de cada um.
Sou um dos filhos da liberdade, daqueles nascido no bom ano de 74 onde a ditadura colapsou e o romantismo determinado de alguns deu a liberdade aos muitos presos às grilhetas do obscurantismo e da corrente única do rebanho amordaçado e obrigado a seguir as doutrinas de pastores velhos, decrépitos e absolutistas.
Falo e escrevo de Abril pelo que me foi transmitido, pelas memórias de meus pais, familiares e amigos mais velhos da geração que nos deu luz de esperança rumo a um futuro diferente.
Nasci livre e cresci nos anos conturbados da construção democrática de uma pátria que tentava sair da cauda do pelotão e alicerçar valores, práticas e caminhos dotados de democraticidade.
Cresci com as dores de Abril mas com a convicção de que eu filho da eterna classe média remediada, tinha tanto direito à educação, cultura e expectativa de futuro como qualquer um.
Sim eu sou da geração livre, filha da geracao amordaçada, neta da geração que no silêncio da noite escura já conspirava para que o ano fosse todo Abril florido em cravos vivos de liberdade.
Sim... eu devo homenagear aqueles que me pariram a liberdade e me entregaram de mão beijada para eu saber que sou como qualquer um...
Sim... eu devo escrever, falar e sentir Abril como se estivesse a sair de Santarém na coluna de Salgueiro Maia rumo à capital do império onde tudo ruiria com meia dúzia de tiros e sem um banho de sangue medonho.
Sim... eu devo respeitar a herança de quem com cravos nas espingardas me deu a maturidade de ter amigos de esquerda e de direita, brancos ou multiculores, com visões e formas de encarar a vida com sonhos diferentes dos meus.
Sim... Abril deu me novos mundos e realidades multidimensionais que me permitem gritar educadamente ( mas convictamente) que o fascismo, o obscurantismo e o regresso a velhos dogmas não ocorrerá.
Porque também nós os filhos da liberdade não permitiremos, apesar dos tempos esburacados e injustos, que o medo e o ódio fomentados pelos demagogos transformem o Abril ( ainda em muito por cumprir) do nosso contentamento num qualquer mês de Inverno amordaçado onde as nuvens e a chuva nos restringam o direito de escolher e de sermos afinal como "qualquer um".